Nem sei bem o que faço ainda aqui, a estas horas ou porque é que não vou já a correr para a cama, quando sei que tenho um dia em cheio, a começar cedinho, amanhã. Sem sono, apesar de cansado… Acabei de pensar, de fazer cálculos, rever apontamentos, refazer grelhas e mais grelhas e aplicar fórmulas em outras tantas grelhas para ter uma primeira versão das classificações que vou propor numa das minhas 2 turmas. Parei para respirar fundo, durante o que julguei serem uns segundos, 2 ou 3 minutos no máximo mas, apercebo-me agora, deve ter passado muito mais tempo e acabei de dar por mim a pensar, sem conseguir evitar também uma degradante ponta de auto condescendência e desapontamento pela previsibilidade de tão recorrentes formas mentais... E o grito alto da mudança? E a expressão clara e objectiva de um rumo, para variar?... Nada disso… Mas pronto, como dizia, dei por mim a pensar que, de facto, sempre fui professor. Isto, dito muito objectivamente, sem qualquer pretensão a nada mais do que aquilo que realmente significa, afinal, em boa verdade, tenho eu próprio aprendido todos os dias com os alunos a interpretar e entender comportamentos deste bicho homem e a entender-me melhor a mim próprio também, a decifrar mecanismos comportamentais muito específicos associados ao crescimento, que me tinham ficado menos claros, numa ou noutra altura, no passado que, agora, vou percebendo. Fascinante. Afinal quem é professor de quem? Isso seria outra conversa. Aliás, que pretensão superior poderia haver em ser-se professor? Com a objectividade e convicção absoluta da constatação de um facto, declaro que sou professor, por natureza. Depois penso que afinal queria ter estudado medicina e que foram as notas que me mandaram para professor. Então afinal parece ter sido o recurso possível. Bem, o facto é que gosto de ensinar, dá-me prazer, é-me gratificante levar os alunos a compreender as coisas mais difíceis. Já não tenho idade para falsas modéstias, conheço-me suficientemente para saber que sou bom professor. Pareço snob, é verdade, um cagão do caraças mesmo, mas que se lixe. Para que haveria de dizer que não sei se sou bom professor, que isso cabe aos outros ajuizar e mais não sei quê, quando, na verdade, sei muito bem que sou bom professor, que consigo despertar nos alunos interesse pela minha disciplina e levá-los a entender o que têm que entender. E mais, na verdade acho que me é difícil reconhecer na maioria dos outros, professores, colegas, hierarquias, a capacidade para me avaliar, em 2 ou 3 vezes que fossem assistir a aulas, minhas, assim, desgarradas, lá pelo meio do ano, perfeitamente descontextualizadas. É grave, eu sei... Não me julgo superior, longe disso na verdade, mas acredito que a avaliação de um professor cabe essencialmente a si próprio. Bem, a si próprio …e a todos. Mas a mensurabilidade (grelhas e palhaçada toda associada: documentos/instrumentos, bah! riscos gigantescos de injustiça!), não me convence nem um pouco, nunca me convenceu... Eu sei se os alunos perceberam o que lhes ensinei e até que ponto o perceberam. Sei se foi graças a mim que este ou aquele aluno progrediu e quanto o fez. Recebo, em cada aula, o feed-back que, a todo o momento, os alunos, mesmo sem se aperceberem me dão, do meu desempenho. Como é que vão avaliar os professores com base em grelhas? Com base em momentos determinados… Com base em critérios estanques e demasiado objectivos. E a parte subjectiva do processo de transmitir conhecimentos, tão representativa, onde fica? Como é avaliada? Aquela parte, diria insubstituível, que, na verdade, todos quanto somos professores sabemos, reconhecemos e identificamos nos colegas… Afinal, em cada escola, praticamente toda a gente sabe quem é bom professor e quem é menos bom… Ninguém se baseou em grelhas para essa avaliação. Apenas se sabe. É algo intuitivo, faz parte da nossa capacidade, enquanto seres humanos, de entendermos o outro. Podemos enganar-nos, claro, faz parte. Enganarmo-nos, reconhecer e corrigir. Ser professor é isso também, é ser-se pessoa e usar das nossas capacidades intuitivas. Aliás, era assim que devíamos privilegiar a avaliação dos nossos alunos, como já o fizemos, em tempos. Claro que cairia o Carmo e a Trindade só de alguém se atrever a sugerir tamanho despropósito. Então agora íamos andar para trás, onde é que isto já viu?! E as nossas ricas grelhas? Avaliar os professores passa muito por aí também, afinal nós até sabemos como é, intrinsecamente sabemos avaliar os alunos. As grelhas são então completamente inúteis? Talvez não completamente. Há quem se sinta mais apoiado e quem estruture melhor a sua justificação para penalizar, recompensar ou para se sentir justo na classificação a atribuir. Por mim, grelhas, apenas como registo de classificações de frequência, à medida que vão sendo obtidas e só para não me esquecer delas. Mas pactuo, cúmplice da palhaçada, acabei de usá-las para obter as notas do 1º período… Mas que carga de trabalhos! O que diabo é então ser-se um bom professor? Quanto a mim, por um lado, é conseguir chegar ao aluno e levá-lo a sentir a necessidade de estudar e de se aplicar. Não é estudar por ele. Não é facilitar. Estudar é difícil, dá trabalho e é assim que deve continuar a ser, difícil e trabalhoso. Nem todos chegam ao fim, claro que não, temos pena. Mas é assim que deve ser. Esses, os que não chegam ao fim nesse tipo de estudos poderão tentar outro tipo, poderão rever o seu percurso e as suas escolhas escolares. Ou fazer outras coisas na vida. Vou ser crucificado. Coitados, eles não têm culpa, têm estado a ser mal aconselhados desde que nasceram. Pensam que têm obrigatoriamente que ser médicos ou engenheiros. Eles e os seus paizinhos, obviamente. Até podiam ser tão positivos esses cursos alternativos, os tais, profissionais. Afinal funcionava bem a antiga escola comercial. Mas infelizmente, …valha-nos Deus! Que palhaçada monumental! Profissionais, tecnológicos, CEFs e toda essa montanha de disparates do faz de conta! É como as tais disciplinas, igualmente vergonhosas, as Formações Cívicas, Áreas de Projecto, Estudo Acompanhado… Verdadeiros atentados que permanecem. O Estudo Acompanhado até poderia fazer algum sentido, se os alunos tivessem um horário muito poucochinho ou se o ministério da educação nadasse em dinheiro, depois de ter satisfeito todas as necessidades em material, equipamento e infra-estruturas das escolas, como é óbvio. Ser um bom professor, por outro lado e essencialmente, é gostar-se muito do que se faz, de ensinar, de se relacionar, de conseguir estabelecer e manter uma relação de empatia com os alunos. Tão redundantemente óbvio. Passa também por ter boa figura, dizia a minha orientadora de estágio, sim, boa figura, há que dizê-lo, é a verdade, dizia ela, afinal da vida faz parte também alguma futilidade. E uma boa dicção também, uma voz que se ouça bem, canora, cativante. Mas hoje em dia perco-me, perco-me completamente, no meio das atribuições e de tudo o que vejo ser esperado, como se fosse muito natural, dos professores, e que me retiram completamente o prazer, retiram-me a motivação, cansam-me tremendamente… até à exaustão. Se pontualmente, num ou noutro ano, tenho dado explicações, é aí que sim, me realizo novamente, onde me entrego aquilo que me dá gozo, o explicar e tornar a explicar, uma e outra vez …até me fazer perceber. Recebi hoje, do meu director, o formulário para definir os objectivos individuais para este ano lectivo, em grelhas e mais grelhas. Deixam-me tão triste, estas coisas… Tal como deixam triste e prisioneiro as grelhas que acabei de usar para obter as minhas propostas de classificação para os alunos. De cada vez que registo lá qualquer coisa, seja o que for, sinto-me a confirmar a minha condição de valente incapacitado, qual refém que naquelas grelhas se assume e se reduz a toda a sua incompetência e inabilidade para conseguir, apenas porque assim ajuizou, dar uma nota razoável a um aluno. Que tristeza, mesmo…
E os pais? Gente tão especial, essa, cuja maioria não se enxerga. Os meninos não têm sucesso? Culpa do professor, naturalmente! O desgraçadinho, filho do arrumador de automóveis, nem tem luz à noite em casa para poder estudar e o raio do professor só marcou 2 horas por semana para lhe dar apoio, fora das aulas. Não chega, claro, tem que marcar mais! Quero lá saber onde é que vai arranjar tempo! É o professor isto, é o professor aquilo, o professor não fez, o professor foi muito duro com o menino, o professor implica com ele, isso não se faz, como é que a criança agora se vai sentir, querem lá ver que se calhar já nem pode falar, ora essa, e depois dizem que o miúdo não participa. Não o deixam falar! Que raio de professores! Ó filho, se isso acontecer mais alguma vez, tu diz-me! Diz-me e quem vai resolver isso é a mãe e o pai! Um professor não tem o direito de falar assim! Era só o que faltava, o meu filho ali aflito e não ia à casa de banho, isso é que era bom! Vais e vais mesmo! Quem é que ele se julga? É por isso que isto está como está! E sabendo perfeitamente que a criança mora longe, todos os dias lhe marca falta de atraso… francamente! Nem comer o miúdo pode, com as filas, os outros passam-lhe à frente e ele é o último a ser atendido. A ele ninguém lhe tira o café no intervalo! Eu vou mas é fazer queixa para a Direcção Regional de Educação! Ele há-de ver quem é que se fica a rir!
Enfim… e por aí fora.
Espera-se que o professor trabalhe e trabalhe e trabalhe, horas a fio, na escola, em casa, aos fins-de-semana, nos feriados, nas interrupções lectivas. Já o faz, sempre o fez. E a família? E os amigos? E a necessidade de estar, conviver, socializar, divertir-se, não fazer nenhum, estar espojado no sofá, ouvir música o tempo que apetecer, ler, brincar, amar, amar, amar, ui, amar muito… sacrificado por mil e uma razões associadas ao trabalho. Fogo, não pode ser. Sempre achei que devemos dar o melhor de nós, empenharmo-nos ao máximo, em cada momento, na nossa vida, no nosso trabalho, em tudo em que nos envolvermos. Tento, fazer isso. Mas o trabalho não pode tomar o lugar, cumulativo, de todos os outros aspectos da vida. Sempre me iludi, pretendendo ter isso em atenção. Teórico! Este ano, talvez… E isso está muito errado, terrivelmente errado, não deve, não pode de todo ser assim. Bem, isto para não falar da história da educação sexual que agora também é suposto o professor fazer. Nós queremos lá saber se o professor é de Matemática ou de Geometria Descritiva ou de Alemão e que tenha estudado e adquirido competências válidas e únicas para ser bom a desempenhar essa função. Ele tem é que ser um Educador! Tem que dar educação sexual, ponto final! E mais, 12 horas por ano! Sorrio… Eu, sou professor de Biologia! Ponto final (digo eu!). Enfim, não sei se ria, se chore…
Desculpem, embalei e por momentos esqueci-me que estava a escrever no blogue, neste nosso espaço tão fixe que não tem culpa nenhuma destas pequenas grandes revoltas e frustrações e cá estão vocês a levar comigo… Desliguem, passem à frente, não leiam, borrifem-se para isto e mandem-me já ir dar uma curva. Vou já. Não era nada disto que tinha pensado partilhar convosco, quando pensei que queria vir aqui escrever qualquer coisa, in the front page, onde a espuma da timidez se derrete como aquela onda que nos chega aos pés e nos percorre os sentidos num arrepio onde a insegurança afinal nunca existiu. É a convicção absoluta de algo e a vertigem única que lhe está associada, o que sentimos. O que eu sinto, agora, é sono, finalmente. Vou-me embora… Tão cedo não volto a estes delírios fora de horas, fica a promessa. No fundo, apenas o que queria ter-vos dito era aquilo que já sabem, que me sinto em casa, convosco, daí a ousadia de vos ter dado semelhante seca. Tenho, entre muitos, este defeito terrível, que há muito combato, de ser assim para quem me está mais próximo. Forma estranha, egoísta …mas de amar.
Um lugar mágico, maravilhoso, que me viu crescer. A água aqui é quente, sai a 96ºC da nascente, logo ali acima... Quis mostrar-vos :)