sábado, 16 de janeiro de 2010

um título qualquer

bem, então lá vai: uma tentativa de resumir o meu percurso de vida, ao sabor do teclado e do fluir das palavras.

tirei o curso de medicina em lisboa. não que eu quisesse muito ser médico, mas pareceu-me o melhor percurso de entre os disponíveis quando acabei o liceu. em lisboa, ao fim de pouco tempo, sentia-me lisboeta e, muito sinceramente, não pensava em regressar a faro. crescemos muito nestes anos da universidade, e são anos de experiências e de testar limites. pelo menos para mim foram. o curso, era uma coisa que eu ia fazendo enquanto descobria os lados mais luminosos e os mais negros da vida em liberdade, fora da casa dos pais. as noites lisboetas têm muitos 'perigos' e eu deixei-me fascinar por todos eles. queria ser artista, sempre quis ser músico, fiz teatro (eu e o paulo, com quem solidifiquei a amizade que levávamos de faro, fizemos juntos um curso ao longo de um ano, ele depois seguiu esse caminho), deambulei pela cidade com grupos de pessoas que pintavam, que escreviam, que faziam teatro. até que rapei o fundo ao tacho e muito daquilo deixou de fazer sentido. entretanto tinha-me apaixonado por uma jovem estudante de matemática em aveiro, que também era cá de faro embora só tivesse vindo para cá aos 15 anos e que muitos de vocês conhecem, e nos últimos tempos do curso já tinha marcado como próxima etapa ir para aveiro, viver uma vida a dois. casei-me com ela mesmo no final do meu curso e mudei-me de armas e bagagens para outra ria.
em aveiro fiz o meu estágio como médico e tirei a especialidade de patologia clínica (que é como quem diz medicina laboratorial) e nasceu o meu primeiro filho. fiz muitos bons amigos e envolvi-me com a comunidade universitária a que pertencia a minha mulher. voltei a fazer teatro com o grupo de teatro da universidade, iniciei-me na fotografia, continuei a fazer música. durante a especialidade fiz também estágios em coimbra e no porto, o que me levou a conhecer bastante bem estas cidades, e descobri que ser português tem no norte uma dimensão diferente da que tem no sul. descobri o paraíso do gerês, de que tenho imensas saudades, e o cheiro da terra húmida que não existe cá no algarve, nem em monchique. tornei-me aveirense, e nunca teria de lá saido se tivesse lá tido vaga no hospital. não tive e naqueles anos, ao fim de 6 meses de acabarmos a especialidade éramos desvinculados. quis o destino que de entre os hospitais que tinham vagas para patologistas clínicos, o de faro fosse aquele que me dava melhores perspectivas profissionais, as outras hipóteses eram torres novas e caldas da raínha. foi por isso que regressei a faro, não sem alguma relutância. tinha a sensação de que eu mudara muito mais do que a cidade, que eu já não era quem de cá tinha saído 12 anos antes.
e fui ficando, embora de vez em quando me dê novamente vontade de partir. em faro nasceu a minha filha, cimentámos, eu e a minha mulher, as nossas vidas profissionais, reaprendemos a conviver com a cidade e com as nossa famílias. os nosso filhos cresceram e decidimos ter mais um filho. nasceu o nosso segundo filho, com alguns problemas causados com por uma infecção que a minha mulher teve durante a gravidez. é surdo, tem paralisia cerebral e epilepsia. é fácil compreender que este foi um acontecimento que tranformou a nossa vida familiar e nos transformou a nós enquanto pessoas. os primeiros tempos foram muito difíceis, mas a vida tem o dom de continuar sempre em frente e hoje em dia comunicamos com ele em língua gestual, a epilepsia está razoavelmente bem controlada com medicamentos e ganhou a sua independência física, começou a andar aos 7 anos.
entretanto abandonei a música, deixei de tocar e compor e dediquei-me à fotografia, uma maneira diferente de comunicar e partilhar com os outros através da estética. ao longo dos anos tornei-me também um leitor compulsivo, da banda desenhada (uma paixão que nasceu em faro, quando comprava a revista tintin) aos romances e ensaios, leio de tudo, há sempre uma pilha de livras em cima da minha mesa de cabeceira a aguardar vez. cada vez vejo menos televisão e gosto mais da internet, pois sou menos manipulado pela máquina trucidante da publicidade e da lavagem cerebral normalizadora da sociedade.
cá em casa agora somos sete (quatro humanos, dois cães e um gato), por vezes oito, quando o mais velho vem de férias ou de fim-de-semana. os dias são gastos entre o trabalho e a família, os hobbies e as tarefas do dia-a-dia. continuo a gostar de viver e de experimentar tudo o que a vida tem para nos oferecer, o lado luminoso, mas também o lado negro, onde por vezes aprendemos muito, como dizem os anglossaxónicos: the whole picture.

6 comentários:

Carlos Canas Martins disse...

Meu amigo Nelão! As voltas que damos...

Comigo também e acho que com muitos de nós, depois de termos saído... essa (in)decisão "volto/não volto para Faro", quando tal situação se apresentou. Agora já não penso, tanto, no assunto.

Tens sete tesouros, cada um mais especial que o outro, cada um à sua maneira. São, em grande parte, os nossos tesouros, que agora, na maturidade (?), nos vão construindo e tornando melhores pessoas.

Hugs!

m. disse...

Obrigada pela tua Whole picture, que nunca é...Grande viagem! Tudo vale a pena mesmo...Já viste a fantástica história de vida que tens por escrever??? Obrigada Nélio.

Pois é Carlos...voltar, não voltar...eu voltei, escoltada pela polícia de fronteira que não me deixou entrar em Inglaterra (antes da CE) e depois de um dia de prisão - por me atrever a tentar entrar nas terras de sua magestade sem cartões de crédito nem cartões profissionais, ou seria por me atrever a fugir. O rumo era a América Latina...

Mas há um bichinho em mim que diz: depois do moço crescer...
qui çá?
m

m. disse...

"Entre as rias" - pode ser um título?

nelio disse...

não m., a expressão não pretende dizer que este resumidíssimo texto é a minha whole picture, quer sim dizer que gosto da whole picture of life, dos melhores aos piores momentos. :)

Lena OR disse...

Nélio, obrigada pelo teu testemunho. Não fazia ideia do teu percurso, nem das atribulações por que passaste... choraminguei ao ler o teu percurso...grande homem em que te tornaste. Um grande beijinho

São Grade disse...

Tenho sempre dificuldade em comentar estas histórias de vida! Dizer o quê!? Parece que o se diz a mais , estraga ... Mas não passa por nós em branco...deixa-nos marca . Não é uma marca é uma coisa, sabes, um feeling, uma sensação , uma ternura, um gosto ,uma coisa, não sei...